“Sem dúvida também em Ipásia chegará o dia em que o meu único desejo será partir. Sei que não devo descer até o porto mas subir o pináculo mais elevado da cidadela e aguardar a passagem de um navio lá em cima. Algum dia ele passará? Não existe linguagem sem engano.”
Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino
Pode parecer estranho que o viajante possa revelar ao morador citadino a sua própria cidade.
O fato é que por ali, a vida interiorana acontecia, em sua maior parte, das portas para dentro, à revelia das praças, dos jardins, das calçadas e da noite tranquila e em virtude da falta de opções de lazer e cultura. Eu, viajante, da rua escutei a assombrosa e luminosa voz da TV, anunciar de longe, que a violência estava perto. Os moradores me diziam: “não ande por ali”, “lá é perigoso”, “não suba aquele morro”, “não desça naquela vila”. Eles temiam a rua, como se vivessem em um grande centro urbano. Os espaços centrais, externos e comuns estavam quase sempre desertos.
Pois, eis que, cartografar o cotidiano, no interior de Minas Gerais, consistiu em praticar o espaço, seja o espaço mental pelo qual reconstituímos desde nossa memória, as rotinas e rotas na cidade, seja o espaço físico, político e social, para onde dirigimos o estranhamento do lugar comum e a possibilidade de interferir em estruturas endurecidas e pré-estabelecidas.
Em um curto tempo, o intento foi justamente provocar o deslocamento perceptivo, físico e mental, com a influência de práticas artísticas contemporâneas e a favor de uma maior consciência do sujeito sobre o meio onde ele vive.
Cartografias Cotidianas >>>> Proposição: Começar do meio. Cartografar, como metodologia de investigação artística. Apropriação do mapa como linguagem criadora de visões de mundo. Ação: mover, deslocar, caminhar, flanar, estar à deriva, deambular. Escutar, discutir, compartilhar. Perceber o espaço com o corpo inteiro e escutar os próprios passos.
Selecionar na paisagem algo que seja de suma importância para aquele que percebe, independente de sua relevância para todos. Nas superfícies: peso, cor, odor, ruído, textura, densidade. Observar: sinais, objetos, construções, elementos da paisagem, marcos físicos, conjecturas naturais e construídas. Redefinir: o início ou do fim de uma zona, de uma área, de uma região, de um setor, por parâmetros não oficiais. Comparar. Repetir. Distinguir. Rever as próprias passagens da vida, na história plural e singular da cidade.
Dos sinais percebidos pelas caminhadas à deriva, construímos mapas perceptivos baseados em pontos de vistas particulares obtidos da morna normalidade. Se é sempre de nós mesmos que partimos, somos nós que nos implicamos (ou não) naquilo que nos cerca e nos envolve. Se não conhecemos nossa própria cidade, como nos apropriarmos dela, plenamente?
Ao agirmos pela escuta dos lugares, dos fatos e dos fenômenos que costumeiramente passavam desapercebidos, certa vertigem se sucedeu àqueles que aceitaram o desafio de vaguear pelas ruas e pelas ideias, com todos os sentidos abertos, atentos, vivos e em estado de presenciar o tempo e espaço presente.
Desencadeado o princípio do querer conhecer, não houve mais volta. Um processo de criação, de semiose, de derivação para algo que seja parte ou todo de uma ação ou uma obra, aconteceu. Soubemos todos que, nesse jogo, havia o risco de uma demasiada estetização do precário, ou de transformar a poesia em denúncia. Mas é o risco que se corre ao invés de não correr risco nenhum.
Ao morador participante, a revelação aconteceu. “Porque nunca passei por ali?”, “Como nunca havia notado isso, se passo por aqui todos os dias?”. Algo antes invisível e esquecido, um gesto, um insignificante qualquer, adquiriu proporções desmedidas, o morador agente se percebe percebendo.
Se o mérito do viajante foi provocar o despertar, esse não aconteceria se o morador não topasse. E para quem se dispõe, viajante de sua própria cidade se torna.
Sylvia Amélia
Belo Horizonte, fevereiro de 2014
Referências:
CALVINO, Ítalo. Cidades Invisíveis. Ed.Folha
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano – 1. Artes de Fazer. Ed.Vozes.
FONSECA, Fernanda Padovesi; OLIVA, Jaime. Cartografia – como eu ensino. Ed. Melhoramentos.
MISSAC, Pierre. Passagem de Walter Benjamim. Ed. Iluminuras.