5.”Quantas Palavras Cabem dentro de uma tesoura?”
Flávia Peret, 2012
Na minha casa, quando eu era criança, o feijão ficava dentro da lata de feijão e o arroz dentro da lata de arroz. Para achar os mantimentos – comprados em visitas mensais ao supermercado e estocados com cuidado – existiam duas opções: a) olhar e/ou b) lembrar. Meu conhecimento do mundo dependia desses dois verbos. Eu descobria as coisas olhando para elas, identificando a relação (arbitrária?) entre o nome da coisa e a coisa. Depois, era preciso classificar tudo aquilo por sensação, cheiro, cor, peso, personalidade, afeto ou antipatia. Na minha infância, eu acreditava que o lugar do arroz era dentro da lata de arroz.
A primeira vez que entrei na casa de Sylvia Amélia me espantei com a (des)organização do espaço. Uma parede inteira coberta com restos de palavras, um enorme mapa colorido, feito de letras coladas e sobrepostas na superfície carcomida pelas inúmeras pinturas e pela umidade. A caligrafia como desenho, um desenho que se faz do excesso, do acúmulo e de um gesto singular e constante: recortar palavras. Uma, depois outra, depois outra e assim, infinitamente. Ela quer descobrir se todas as palavras do mundo cabem dentro de uma tesoura. Na casa dela, é possível encontrar cravos da índia dentro do pote de coentro, óleo no vidro de macarrão, açúcar no pote de sal, feijão no pote de biscoitos, pregos na caixa fósforos. E para facilitar essa lógica, ela cola em todos os seus potes e vidros palavras-etiquetas com os nomes daquilo que as coisas não são. Quem disse que conhecer o mundo é uma experiência fácil?
Sylvia Amélia aprendeu a recortar antes de escrever. Com a tesoura da mãe recortava o mundo. Ela diz que recortar é mais do que técnica, é uma forma de pensamento. Com a tesoura, ela inventa canto e plumagem para suas palavras.
Flávia Peret, BH, 2012
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6. Recortes, palavras e lugares
Ponto de partida e de chegada, um lugar é inventado pela escrita recortada. Entre um caminho incerto e uma escolha preparada, no intervalo do corte da tesoura ou no trupicåo do passo, freio o fluxo no tempo. Trajetos se sobrepõem. palavras se sobrepoemam. Ar sinalizado na placas de pARe.
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O ato de recortar. irreversível. A palavra cortada em adesivo se adere ao plano e escreve um lugar-cor. Uma “pintura” tátil, aderente. Cortar a palavra permite coisificar a escrita. E escrever com a tesoura gera restos de palavras. A palavra recortada nasce junto com seu caco, sua sobra, enquanto a matéria ensina olhar para o que resta. Escavada da superfície do plano, a palavra gera a ilegibilidade no que sobra.
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Do corte à vida, meu texto desenho. Recortes encarnam, incorporam a matéria que a contém. Plástico, cortiça, papel. O texto pode ser um lugar. “O texto é a mais curta distância entre dois pontos” Do fragmento, do pedaço, da sobra, posso chegar a um mapa. O corte da tesoura é uma ação sem retorno. O aqui agora da vida é um sem retorno, vivo enquanto corto, corto enquanto vivo.
Sylvia Amélia, 2012-2014
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7. Procedimentos de trabalho e Desvios
Procedimento 1 : Geo-palavras de grafias com sobras. Uso do corpo das palavras como célula para a construção de geografias textuais, composição de territórios com pedaços de palavras, palavras e contra-palavras. O Texto, como “lugar que viaja”. Margeando o fundo escavado de planos des-camados o espaço é habitado por cacofônicas escrituras vestígios da Pós-história. Paisagens povoadas. Relevo textual de territórios marcados, construções erguidas com: Palavras – ponte/ Palavras – tijolo/ Palavras – gente/ Palavras – vegetação/Palavras – leito/Palavras – migratórias/ Palavras – paisagens/ …outras .
Procedimento 2: Buscar a vocação expressiva da matéria moldada à prática e a política do espaço. Investigar a matéria como coisa que se expressa por sua constituição própria, para falar e ser percebida como coisa “falante”. Partir de uma função originária para desencadear pela coisa em ação. Montagem/ Colagem/ Des-locamento/ Localização específica para o vasto pensamento.
Procedimento 3: Coleta de Sinais/ Pedras/ Escritas/ Tempos/ Resíduos/ Pedaços/ Abandonos/Histórias. Arranjos. Deste mundo mesmo.
Procedimento 4: A intervenção baseada na escuta de objetos, espaços e ambientes (resíduos, pedaços de papel, livros, letreiros, placas, fachadas, parques…) e a invenção de uma vocação para a matéria e para o espaço. Interesse pelos diálogos figurados em situações específicas, pelo uso do signo verbal (palavra aderida ou subtraída do espaço), pelo uso de dispositivos que fazem-os (matéria e ambiente) “falar”: de sua história, de seu estado, de seu contexto social, econômico e/ou político não evidente.
Procedimento 5 Desvio : Situar na domesticidade e no gênero feminino a narração da experiência. Horas de pedras e feijões.
Sylvia Amélia, BH, 2014