Ensaio sobre a obra “OS CLARÕES DA FRASE”

  Releitura de trechos do livro “O inventário do Tempo”, Michel Butor

“Os clarões multiplicaram-se”. A partir dessa frase elaboro este texto apoiado em trechos compilados do livro “O Inventário do Tempo” (L’Emploi du Temps), de Michel Butor. O que se segue será: 1- um breve relato sobre a intertextualidade presente na relação entre tradução/leitura do livro lido e a obra visual correlata; e, 2- pela via do “trabalho da citação”, o texto pretende espelhar uma “deformação” embasada em trechos selecionados do mesmo livro. Assim, busco executar o texto como performance da citação.

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A instalação nomeada “Os Clarões da Frase” é composta por um extenso rolo de papel branco aberto, articulado em volutas sobre si mesmo, e pelo livro “O Inventário do Tempo”, que contém páginas marcadas e trechos grifados. Nas extremidades do papel, as primeiras e últimas palavras da obra literária foram recortadas e o vazio de dentro das palavras vazam para o chão.

Certamente, nessa imensa folha branca, coberta pela luz que a encarna, nos metros quadrados deste volume, que relaciono à memória do personagem, multiplicam-se as leituras, impregnadas pela crua materialidade da folha que se avoluma e se estende. Não há na folha mencionada qualquer lacuna, senão, por ser o próprio volume uma grande lacuna na qual as inscrições estão ausentes, a cor branca, por sua vez, não faz surgir nenhuma palavra e as ruas que não existem neste mapa fantasmático nos transportam para o percurso da leitura de um livro que poderia ser a mesma via de entrada e saída de uma obra.

“Certamente, nesta folha de papel coberta de traços de tinta de cinco cores, os centímetros quadrados ligados em minha memória a casas vistas, a horas, a aventuras, multiplicaram-se, impregnaram de realidade uma área cada vez mais vasta, mas restam lacunas imensas, buracos imensos nesse espaço, onde as inscrições continuam letra morta, onde linhas não fazem surgir nenhuma imagem, onde ruas continuam sendo a noção vaga de “ruas de Bleston”(…) p. 113.

A memória transmutada do narrador para a obra veste-se de branco e dobra-se sobre si mesma. Mas mesmo assim, algo do texto atravessa essas dobras sem palavras nem figuras, talvez pelas sinalizações textuais do início e do fim, ou quem sabe pelo acúmulo que aponta para o espaço como testemunha. Enquanto meu olhar deambula nas volutas no papel, busco a razão da obra em si mesma, nesse terreno disforme em que o papel conforma, tateio as inúmeras voltas que neste texto escrito busco sustentar. E de repente tropeço na imagem de um obstáculo, a obra como uma barreira, assim, o que era movimento vira imobilidade, e a fim de reencontrar as bases e alicerces para outras leituras, duvido do que penso.

“Assim, mesmo em mim, alguma coisa atravessou estas estações sem crescer nem desaparecer, a acumulação das horas reservou certos espaços-testemunhas, e enquanto deambulo, buscando a razão de mim mesmo, nesse terreno vago em que me transformei, tateando enormes massas de sedimentos, de repente tropeço à beira de uma fenda, no fundo da qual o solo de antes ficou nu, medindo então a espessura dessa matéria que tenho de sondar e peneirar, a fim de reencontrar as bases e os alicerces.” p. 130.

Que seja então esta obra um obstáculo que não serve como guarda corpos, pois é frágil para sustentar qualquer peso além do seu próprio. Melhor, que seja um livro aberto cujo miolo contenha somente uma, porém, longuíssima página, feita para ser lida de um só golpe, com a varredura do olhar que varia nas luzes sobre as camadas que executam o contínuo na finitude.

(…)“resolvi construir à minha volta essa muralha de linhas sobre folhas brancas, sentindo como já estava atingido, como me obscurecia, o quanto já tinha deixado penetrar de lama em meu crânio, para chegar a esta situação estúpida e para perturbar-me tanto com ela, sentindo como a cidade havia contornado a minha irrisória vigilância” (…).p. 218.

Resolvi construir esse vai-e-vem de volumes em folha branca quando me senti atingida pela narrativa do livro, e como isso me desafiava, e quanto o texto penetrava em mim pela suspensão da dúvida e na duração da incerteza do tempo da leitura, tudo para se chegar a essa situação estúpida em tentar traduzi-lo a outro meio e também para perturbar-me tanto com o lugar onde me coloquei, sentindo como se a obra fosse apenas um contorno a minha pretensiosa intenção.

“Não me resta senão, nesse desmoronamento, este irrisório amontoado de frases inúteis, semelhantes às ruinas de um edifício inacabado, em parte devido à minha perda, incapaz de me servir de refúgio contra a torrencial chuva sulfurosa, contra a inundação dessas águas betuminosas de marulho zumbidor, contra o perpétuo assalto dessa zombaria trovejante que se propaga de casa em casa até os papéis de parede do meu quarto.” p. 274.

Não me resta senão, nesse desmoronamento, o irrisório amontoado de suposições, as volutas brancas que ergui à semelhança da estrutura temporal arquitetada pelo autor para o livro, e em parte, desmoronada devido à minha falta de coragem em queimar as folhas do livro como as casas da fictícia cidade de Bleston.

“ e não tenho nem mesmo tempo de anotar o que se passou na noite de 29 de fevereiro, e que se vai apagar cada vez mais de minha memória, enquanto me distanciarei de ti, Bleston, a agonizante, Bleston cheia de brasas que sopro, o que me parecia tão importante a propósito do 29 de fevereiro, pois o ponteiro grande está na vertical, e agora minha partida conclui esta última frase.” p. 327.

Ainda há tempo para dizer da obra, enfim acreditar que ela se abre para muitas leituras possíveis, tal como o livro, sem dúvidas. Que minhas notas sejam lidas como pistas, pois se as palavras não são capazes de traduzir o que as imagens sintetizam, elas também não podem oferecer todo o esquadrinhamento descritivo a que o texto se propõe. A mim, não resta senão concluir essa última frase.

Sylvia Amélia, Belo Horizonte, 2014