Textos sobre a exposição CARTOGRAFIA DO CHÃO e a obra INVENTÁRIO DO SOB

 9.PASSEIO, Sylvia Amélia
Texto publicado no livro “Guia Morador Belo Horizonte, 2013

 10. S/Título (poema), Alain Bisgodofu
Texto publicado no catálogo da exposição “Cartografia do Chão”, 2007, Palácio das Artes, Belo Horizonte.

 11. O Inventário e seus Desvios, 2017. Sylvia Amélia

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5.1.PASSEIO

No ano de 2003, diante do encontro de vestígios de palavras escritas com pedras, nos passeios do centro de Belo Horizonte, e ainda sem saber sobre sua origem, me perguntei sobre a natureza daquelas palavras interditadas, atravessando o caminho. O que elas revelam sobre a vida urbana e sobre seus habitantes? O que a palavra IRIA fazia ali, cravada em uma esquina do centro? IRIA, para onde? Adiante, encontrei a sílaba RO ao lado de uma banca de revistas; em frente a um açougue na rua Espírito Santo estava escrito controversamente RELOJOARIA VICTOR; na calçada da papelaria, a palavra MODAS. Em outros lugares do centro, a palavra não chegava a legibilidade, estavam atravessadas, bloqueadas, subtraídas.

Sobre a concretude da pedra, saí à procura de fragmentos textuais que não mais funcionavam como sinalização ou informação e sim proporcionavam relações de ordem poética e simbólica, com a língua, com a cidade, e consequentemente com a arte. Ao invés de atravessar o campo urbano como algo a ser vencido, ultrapassado, alterei meu corpo para se projetar na rua em um gesto desacelerado. “Você é fiscal da prefeitura?” Eu lia nos olhos dos vendedores parados na porta das lojas, me olhando sem coragem para perguntar por que eu fotografava o chão.

Se pensamos a cidade pela utilidade e funcionalidade que é prescrita a tudo que se constrói nela, a função da calçada seria a de permitir que o passante circule e facilitar seu acesso, contudo, os vestígios de palavras encontradas apontavam para outros usos, outras camadas de leitura.

Em meados dos anos 1920, o calçamento do centro de Belo Horizonte passou a ser revestido com pedras, em mosaico de motivos ornamentais, para melhorar a circulação e usufruto dos pedestres. Escritas em granito e basalto, as pedras conformam o que aqui chamamos de calçada portuguesa (ou Petit-pavê em Curitiba e Calçada-mosaico em Lisboa) e foram instaladas sob influência dos calçadões do Rio de Janeiro. Depois de instalado, espaço público dos passeios logo sofreram sua primeira intervenção: os comerciantes passaram a escrever com as pedras, em frente a loja, no chão, o nome de seus estabelecimentos.

Naquele tempo, as pessoas passeavam pelo centro, fruindo e olhavam os anúncios no chão. As mudanças de endereço de uma loja também eram menos constantes, e a escrita com a pedra denota também uma maior permanência do comerciante naquele espaço. Na medida em que a paisagem gráfica da cidade se modifica e os modos de interpelar o consumidor se tornam mais apelativos, e velozmente se substituem, o olhar do passante passou a ser dirigido para alvos mais sedutores.

Pela frequência dos pés que atravessam o texto e deslocam o seu sentido, nas reformas que caducam as escritas, nas mudanças imobiliárias e nas substituições urbanas deixam seus rastros, estavam essas palavras. Afirmando que a falta de sentido não constrange o olhar, afirmando a presença da ausência, na pegada do tempo, ancorada pelas palavras caducas, escuto a voz desta cidade que consome sua identidade histórica, velozmente.

As imagens que se seguem compõem um inventário realizado entre 2003 e 2007, e apresentam sinais da história que trilhamos. Na paradoxal relação que a cidade estabelece entre a melhoria qualidade de vida e a vigência de um plano urbano que engendra interesses privados, percebemos que, por via de vestígios como esses, a cidade transborda as sobras inexatas de seus cálculos.

Sylvia Amélia
BH, 2013

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 5.2 

Calçamentos desastrosos
Dentro da palavra o desastre
Regurgita sonhos neste bulevar vazio
O viandante pisa no coagulado sangue de si e se esquece
Enquanto na rua resta o risco
O traço sendo seqüestrado
Fragmenta tudo aquilo que morre
Berço de pedras na cidade horizontal
Signo de madrugadas frias
O mosaico de incertezas se avoluma e o poema brota
Rústico na calçada como se fosse um ( T ) intoxicado de delírios paraléxicos
Nada nesta parábola caduca o que também reflete
Descolorindo reminiscências desta particular escritura
Algo veio contagiar o fluxo – o chão
Feito nódoas – letras impregnadas de terra pairam além do passeio
Pus de paragens manuscritas paralisam o tempo
Em urbes asfálticas
Pedregulhos de almas se multiplicam   …

(INVENTÁRIO MÍTICO)

Paralelepípedos lascados
Rochas que desmancham pavimentos de fantasia
Adjetivam este silêncio surdo preso nas lápides da memória

Alain Bisgodofu
Abril de 2007

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5.3. O Inventário e seus Desvios, Sylvia Amélia

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