Artigo sobre Intervalos Entre a Imagem e a Escrita

O diálogo das artes visuais com a literatura e a poesia se faz presente neste texto que empreende um exercício de aproximação entre escritos de Ana Hatherly (1995; 2005; 1975), Maria Gabriela Llansol (1985; 2015) e a obra Manuscorte, livro da artista visual Sylvia Amélia (2019).

No livro Um falcão no Punho, Llansol recria o princípio da geometria plana com a seguinte frase: “O texto é a mais curta distância entre dois pontos.” (LLANSOL, 1985, p.135). Diante da frase original, sabemos que a expressão “linha reta” foi substituída pela palavra “texto”. Sendo, portanto, a escrita ou a leitura (texto) o mais curto intervalo – espacial ou temporal – entre dois pontos. Em sua busca por uma ciência da arte, Kandinsky irá definir o ponto como “a derradeira e única união do silêncio e da palavra”, e prossegue: “É por isso que o ponto geométrico encontrou sua forma material em primeiro lugar na escrita – ele pertence à linguagem e significa silêncio.” (KANDINSKY, 1997, p.17). O texto é o mais curto intervalo entre dois silêncios.

Há na escrita de Llansol o procedimento de grafar a expressão do indizível com um traço, um sinal de incomunicabilidade que se anuncia. A imagem gráfica ( _______ ) está no lugar do que não se escreve com palavras, um paralelo visual que não iguala nem anula a expressão  textual. Traço (imagem) que contribui para a expansão das formas de enunciar o que não é possível de ser dito ou escrito, contudo pode ser mostrado. Hatherly irá dizer que:

“O silêncio da escrita – a escrita é uma fala simbólica, muda – conduz o escritor à reflexão sobre o silêncio das palavras, implícito nela. Mas o mesmo problema de silêncio se põe a outras formas de expressão artística, como, no fundo, a todas as formas de expressão. ´o que pode ser mostrado não pode ser dito´ declara ainda Wittgenstein na Proposição 4.1212. (HATHERLY, 1975, p.138)”

Manuscorte (AMÉLIA, 2019) é um livro sobre fazer imagens com palavras.  Inteiramente escrito a tesoura, utilizou-se o vinil adesivo preto, colado sobre papel branco. É uma obra de edição da artista, inédita, que possui 96 páginas, em formato ½ A4, preto e branco. Realizado entre os anos 2015 e 2018, o assunto do livro gira em torno do ato de recortar e de escrever à tesoura.

Figura 1 Artigo

Figura 1  – Livro Manuscorte, Sylvia Amélia, 2019, p. 32 ( esq.) e p.33 (dir.).                                                Fonte: Obra original (no prelo).

O procedimento de recortar o contorno das palavras e extraí-las de um plano produz também sua contraforma, seu invólucro. Se muito se diz sobre a interioridade da escrita, o ato de “manuscortar” produz a exterioridade material do texto. Nos deparamos também com o ruído da escrita, fragmentos textuais em que a legibilidade é interditada. O texto-imagem ora é percebido como escrita, ora como imagem, ora se desconecta das possibilidades legíveis para ser apreendido como matéria da imaginação, uma escrita que não pode ser dita.

Pela instrução da mão a artista escreve e recorta o manuscrito, assim, manuscorta, e por esse meio dá-se a ver que toda palavra é também imagem.

Hoje em dia, quando falamos de escrita, no contexto da literatura, falamos de texto, dum tipo de composição em que o processo de representação, a sua visualidade, se tornou de tal modo implícito que passou para a região da invisibilidade. O texto, mesmo para o leitor especializado, tornou-se sobretudo o que ele significa, os dados conceptuais da mensagem, nada ou quase nada de como ele se apresenta à leitura. (HATHERLY, 1995, p.37).

Estamos diante de um meta-livro, que explicita no jogo entre o ver e o ler o que está entre um ato e outro. Escrever é um ato que se sustenta no contínuo processo de sua prática.Nas palavras de Maria Gabriela Llansol, encontramos a razão de ser do escrever no próprio ato de escrita.

Escrever, para mim, é escrever. Quando escrevo histórias não me exprimo. E, finalmente, escrever é fazer uma coisa com as minhas mãos. As minhas mãos formam coisas, que saem das minhas mãos, do meu pensamento, das minhas recordações. Escrever é aprender a escrever. Escrever é um trabalho difícil, é fazer coisas de que, por vezes, não gosto. (LLANSOL apud FENATI, 2015, p.15).

O gesto praticado exaustivamente a instruir a mão, associa-se também ao título do livro Um Falcão no Punho, de Llansol, e a “mão que se tornara inteligente” de Ana Hatherly (1995, p.11).  Na contramão das tecnologias que avançam, utiliza-se uma tecnologia que recua, que cria outras condições de produção de texto.Para escrever com a tesoura, Amélia descreve o seguinte procedimento:

Escrever com a tesoura sem a mediação do risco é uma prática possível de ser dominada por qualquer um que se esmere a exercê-la: 1- Disponha de uma superfície rígida e maleável, como uma folha de papel, tecido ou plástico. 2- Pense em uma palavra e visualize-a mentalmente. 3- Faça com que a tesoura rompa o plano tendo como guia os contornos da palavra. 4- Separe a parte superior da palavra-figura, do fundo onde ela se encontra. Faça o mesmo com o hemisfério inferior, acompanhando as entradas que permitem forjar a palavra que se escreve/desenha. 5- Ao concluir o percurso da tesoura sobre a palavra idealizada, você terá como resultado a palavra recortada e palavra vazada. Ao se utilizar um adesivo como suporte, a palavra pode migrar para o espaço físico e ser afixada sobre outras coisas no mundo. Um aviso: escrever com a tesoura produz restos de escrita, “ruídos”. (AMÉLIA, 2017, s/p)

Na escrita cursiva uma letra está ligada à outra pelas pernas, elas formam uma corrente em um enlaçamento de sinais que também são sons. Assim, a cursividade potencializa a elasticidade da palavra em uma dimensão gestual. Toda palavra recortada carrega materialmente seu entorno e ao ser destacada do plano ela produz ausências, silêncios e buracos, como toda forma de escrita, contudo, aqui, materializada em uma forma visível; sabemos, escrever é cortar.

Figura 2  – Livro Manuscorte, Sylvia Amélia, 2019, p. 17 ( esq.) e p.19 (dir.).                                                Fonte: Obra original (no prelo).

Na primeira parte do livro Manuscorte (2019) a metamorfose da palavra “escrever” é o recurso central da narrativa. Inicialmente escrita em preto e apresentada na parte central da folha branca, “escrever” apresenta-se depois em negativo, como uma abertura entre a parte de cima e a parte de baixo da palavra e deflagra um movimento de expansão do centro para as bordas, ainda que em disposição linear, a sugerir uma “boca” que se abre (Fig.2).

Figura 3 Artigo

Figura 3  – Livro Manuscorte, Sylvia Amélia, 2019, p. 24 ( esq.) e p.25 (dir.).                                                Fonte: Obra original (no prelo).

Nas páginas seguintes, “escrever” assume uma forma caligráfica inconstante, nos tamanhos, nas distancias das letras, pela espessura variada e pela sensação de perda de gravidade, a expandir-se no espaço da página, livre da retidão da pauta, com atributos de coisa leve (fig.3).

Essa gestualidade caligráfica sugere movimento e reforça a leitura do texto-imagem como uma representação imagética. Nas páginas seguintes, a palavra “escrever” se distancia da materialização simbólica para tornar-se um corpo sígnico visual cuja leitura está em suspensão, ainda que persista a forma matriz geradora da palavra “escrever” apresentada na página anterior. A montagem narrativa conduz o leitor por uma via que desloca a leitura do texto para leitura da imagem, para o resto da palavra “escrever”(fig.4).

Figura 4 Artigo

Figura 4  – Livro Manuscorte, Sylvia Amélia, 2019, p. 26 ( esq.) e p.27 (dir.).                                                Fonte: Obra original (no prelo).

Recortar é uma prática comum ao ler e ao escrever. Lemos recortando, escrevemos recortando. Recortar um texto é também destacar algo, a mencionar, a citação. Compagnon (2007) nos lembra, que o jogo do recorte e da colagem pode ser uma prática anterior à aquisição da linguagem:

Recorte e colagem são experiências fundamentais com o papel, das quais a leitura e a escrita não são senão formas derivadas, transitórias, efêmeras (…) É por isso que se deve conservar a lembrança dessa prática original do papel, anterior à linguagem, mas que o acesso à linguagem não suprime de todo, para seguir seu traço sempre presente, na leitura, na escrita, no texto, cuja definição menos restritiva (a que eu adoto) seria: o texto é a prática do papel” (COMPAGNON, 2007, p.12).

Extrair a palavra de um plano por meio do recorte é conceder-lhe a propriedade de gerar restos, de modo distinto da inscrição que se risca em uma superfície ou se assinala em uma tela (fig.5).

Figura 5 Artigo

Figura 5  – Livro Manuscorte, Sylvia Amélia, 2019, p. 40 ( esq.) e p.58 (dir.).                                                Fonte: Obra original (no prelo).

A contraforma é também o fora da palavra, um ruído de escrita com o qual nos deparamos. O que resta da palavra é também um vestígio, que associamos ao que Llansol chamou de “lixo de escrita”:

Cercava esse jardim miserável da cidade, que substituía agora o antigo palácio que lá estava, e fora a Universidade freqüentada por Luís M. Sua mãe, Margarida, sabia como ele tinha sido preso pela primeira palavra que pronunciara – lixo –, e a que tinha acrescentado, nos tempos em que ainda o ensinara – lixo de escrita. Ele gostava de pronunciar lixo de postigos, lixo de esquinas, lixo de arestas, lixo de lápides, lixo de siglas, lixo de grades, lixo de portais esquecidos, lixo de todos os termos variáveis. Nesta Escola, que não era secreta, e só funcionava de dia, Luís M. tornara-se imperceptivelmente o domador do texto de sua mãe, e o vadio que passeava nas betesgas da cidade de Lisboa. (LLANSOL, 1985, p.22)

A ideia de lixo de escrita evoca a escrita perdida, aquela que se joga fora, que não se lê nem se fala ou escuta, porque fora abandonada, mas que mesmo assim, pode ser posta em uso, como no trecho citado acima, pronunciado por Luis M.

Figura 6 Artigo

Figura 6  – Livro Manuscorte, Sylvia Amélia, 2019, p. 91 ( esq.) e p.66 (dir.).                                                Fonte: Obra original (no prelo).

Sendo texto ou imagem a matéria que resta, o lixo de escrita é incluído na obra Manuscorte, a compor, lado a lado com as palavras, um percurso narrativo e visual que explicita a dimensão da escrita que costumeiramente está escondida nos rascunhos, nas rasuras, no limbo do escritor/artista. Assim compreendemos que “entre a palavra e o ruído não existe antes nem depois.” (AMÉLIA, 2019, p.47).

Se precisamos de tempo para responder aos estímulos que nos chegam, quando a operação de leitura é desacelerada ou não se completa, habitamos um estado de suspensão que amplia a percepção e a consciência. Somos impelidos a inventar um sentido, a decifrar ou ainda, a suportar a presença do ilegível.

A escrita é uma fala muda, uma forma de materialização do imaginário. Escritor e leitor – no seu sentido mais lato – têm de se apoiar na força da imaginação referencial porque, na escrita, como na leitura, opera a função simbólica, e o símbolo é a presentificação de uma ausência. Seja qual for o tipo de escrita, visual, sonora, gestual, seja qual for o tipo de suporte estamos sempre ante imagens codificadas. E desde que haja codificação, haverá necessidade de decodificação para que a comunicação se estabeleça, mesmo que essa comunicação deseje comunicar a sua incomunicabilidade (HATHERLY, 2005, p.107).

Assinalamos por fim há um intervalo entre a escrita e o desenho do recorte, quando a palavra transita entre a coisa lida e a coisa vista.

Figura 7 Artigo

Figura 7  – Livro Manuscorte, Sylvia Amélia, 2019, p. 85 ( esq.) e p.86 (dir.).                                                Fonte: Obra original (no prelo).

Em Manuscorte encontramos formas legíveis, visíveis, indizíveis (fig. 7) que se revezam na narrativa do livro a convocar o leitor a realizar uma leitura criadora, que será sempre plural e indeterminada. Como nos lembra Hatherly (1975, p.141 ): “Saber ler é como saber criar”.

(Artigo publicado nos Anais do I Congresso Poéticas da Proximidade, 2018, Cuiabá.)

Link para o post do livro MANUSCORTE –   https://sylviaamelia.com/2019/08/07/manuscorte-2019/

REFERÊNCIAS

AMÉLIA, Sylvia. Manuscorte. Belo Horizonte, Edição de autor, 2019 (No prelo).

AMÉLIA, Sylvia. Recorte Escrito, breves instruções para se escrever com a tesoura. In: AMÉLIA, Sylvia. Textos. (site da artista). Belo Horizonte, 2019. Disponível em: https://sylviaamelia.wordpress.com/2014/04/09/textos/. Acesso em 9 jan.2019.

COMPAGNON, Antoine. O Trabalho da Citação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

FENATI, Maria Carolina Junqueira. Escrever, Escrever: Diários, Exílio e Escrita em Maria Gabriela Llansol. 386 f.  2015.  Tese (Doutorado em Estudos Portugueses) – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova Lisboa, Lisboa, 2015.

HATHERLY, Ana. A casa das Musas, uma releitura crítica da tradição. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.

HATHERLY, Ana. A Idade da Escrita e outros Poemas. São Paulo: Escrituras, 2005.

HATHERLY, Ana. A Reinvenção da Leitura. Lisboa: Futura, 1975.

KANDINSKY, Wassily. Ponto e linha sobre plano.São Paulo: Martins Fontes, 1997.

LLANSOL, Maria Gabriela. Um Falcão no Punho. Lisboa: Relógio D`Água, 1995.