O Corpo entre a arte e o Dicionário do Lar: uma leitura sobre os vídeos domésticos de Letícia Parente, 2017

Silvia Amélia Nogueira de Souza

Resumo: Considerando a importância da pesquisa sobre as fontes primárias da história da mulher e da arte feminista no Brasil, trazemos aqui o estudo inédito sobre o ”Dicionário do Lar”, um manual para as mulheres, publicado no Brasil nos anos de 1950 e 60, do qual destacamos relações entre a vida e a arte, tendo o corpo feminino como eixo de nossa análise. Do “Dicionário do Lar”, foram extraídos alguns atributos da mulher modelo, tais como a manutenção da beleza e o trabalho doméstico, para orientar a crítica de obras de arte relacionadas com esse padrão feminino, contrapondo-as com a produção da arte feminista dos anos de 1970. Nessa perspectiva, nossa proposta é analisar 2 obras videográficas da artista Letícia Parente (1930-1991) e apresentar um estudo comparativo entre tais obras e o modelo proposto pelo “Dicionário do Lar”. Ao entrever o corpo feminino como meio e suporte para a realização de obras de arte contestatórias, é possível compreender o contexto e as prescrições corporais para a “Rainha do Lar” preconizada pelo manual. Enfim, o estudo propõe uma reflexão sobre a mulher do lar e a emancipação feminina, na dupla posição de mulher e artista, entre o estranhamento e a identificação. 

Palavras-chave:Arte, Corpo, domesticidade, Dicionário do Lar

O corpo é uma casa. O corpo é um livro, escrito pelas marcas indeléveis do tempo. O corpo é um cárcere, preso ao sexo biológico, silenciado. O corpo é um templo sagrado e muitas vezes, violado. O corpo é um estandarte, em movimentos de expansão e contenção. O corpo é uma fronteira, capaz de transbordar, de transpor limites sociais, políticos e culturais. O corpo é a matriz geradora de outro corpo, que logo ao nascer, recebe um designo. Ser menina ou ser menino, eis nossa primeira marca. 

O Dicionário do Lar, de que corpo ele fala

O Dicionário do Lar é uma coleção de 5 tomos, escrito para mulheres, sob a forma de verbetes, editado no Brasil entre 1956 e 1967 e assinado por Claúdia Santos. O livro “se destina a uma finalidade: a de bem servir ao lar e, sobretudo, à dona de casa, a quem cabe tantas responsabilidades.”(SANTOS; 1966, p.8). Editado nas décadas que antecedem o boomfeminista dos anos 1970, no Dicionário do Larlemos que o corpo físico e mental da mulher existia sob as premissas que predominavam nessa sociedade, cujo modelo de família branca, de classe média, heteronormativa definia claramente os papéis da esposa e do marido e “mais do que refletir um aparente consenso social sobre a moral e bons costumes, promoviam os valores de classe, raça e gênero dominantes de sua época (BASSANEZI, 2004, p.609).

O volume analisado pertence à edição de 1966 (11ª edição), cuja coleção possui 1283 páginas entre textos e imagens. Direcionado para a mulher educada em um regime conservador e orientada para cumprir o destino feminino de dona de casa, esposa e mãe, o texto sobre a mulher nos anos dourados no Brasil descreve este padrão: 

Ser mãe, esposa e dona de casa era considerado o destino natural das mulheres. Na ideologia dos Anos Dourados, maternidade, casamento e dedicação ao lar faziam parte da essência feminina; sem história, sem possibilidades de contestação. A vocação prioritária para a maternidade e a vida doméstica seriam marcas da feminilidade, enquanto a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade. A mulher que não seguisse seus caminhos, estaria indo contra a natureza, não poderia ser realmente feliz ou fazer com que outras pessoas fossem felizes.(BASSANEZI, 2004, p. 610)

Dicionário do Lar prescreve o que é socialmente esperado da mulher , “isso não quer dizer que todas as mulheres pensavam e agiam de acordo com o esperado, e sim que as expectativas sociais faziam parte de sua realidade, influenciando suas atitudes e pesando em suas escolhas” (Bassanezi, 2004, p. 608). Ser mulher supunha uma determinação externa à sua vontade, como pode ser lido nas palavras de Beauvoir: 

(…) a passividade que caracterizará essencialmente a mulher feminina é um traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trata de um dado biológico: na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade. (BEAUVOIR, 1975, p. 21)

Na análise e classificação do verbetes do DL identificamos, pela recorrência, que constitui o horizonte de ocupação da mulher narrada e para onde seus esforços físicos e mentais, mais e menos se dirigem, na seguinte quantificação: 1o– Receitas (comida e bebidas), informações alimentares e preparos – 2034 verbetes; 2o– Limpeza, organização, manutenção e conservação da casa e do enxoval – 530 verbetes; 3o– Manutenção e cuidados com a beleza – 330 verbetes; 4o– Crianças – 200 verbetes; 5o– Boas maneiras, normas sociais, “como servir”, educação para a sociedade e casamento – 188 verbetes;6o– Saúde, primeiros socorros, medicina caseira – 99 verbetes; 7o– Decoração, mobiliário e interiores – 52 verbetes;  8o– Conhecimentos gerais e curiosidades – 34 verbetes; 9o– Autoajuda – 31 verbetes;10o– Economia doméstica (reaproveitamento) – 24 verbetes. 

Nos verbetes BELEZA, 3oassunto mais mencionado no DL, observa-se um grande investimento nas técnicas do corpo (como andar, sentar, falar, cumprimentar etc) utilizados como estratégias de sedução com o objetivo de manter ou conseguir um bom casamento:

O destino que a sociedade propõe tradicionalmente à mulher é o casamento. Em sua maioria, ainda hoje, as mulheres são casadas, ou o foram, ou se preparam para sê-lo, ou sofrem por não ser. É em relação ao casamento que se define a celibatária, sinta-se ela frustrada, revoltada ou mesmo indiferente ante essa instituição. (BEAUVOIR, 1975, p. 165.)

A beleza se expõe, discretamente, e a mulher é um corpo que se cala, que deve esconder seus sentimentos. O verbete CONSELHOS DE BELEZA, por exemplo, prescreve que:

Toda mulher que deseje ser graciosa, deve estudar com esmero sua maneira de andar, o movimento das mãos, da cabeça e até o descerrar dos lábios num sorriso. Tudo isso deve ser aconselhado sempre, naturalmente, com discrição, sem exageros, que só levam ao ridículo. (SANTOS, 1966, p. 390). 

Encontramos nos verbetes CIÚMES, TERMOS OFENSIVOS e MÁGOAS, menções ao comportamento recomendado à mulher em caso de insatisfação com o casamento: “Suas mágoas e rancores, guarde-os para si. Espalhá-los sobre os demais é injusto” (SANTOS, 1966, p.645). O corpo é também silenciado nos processos que envolvem a sexualidade, os ciclos e os fluxos corporais da mulher. Nada é mencionado sobre virgindade, menstruação, sexo, menopausa e muito menos aborto ou violência doméstica. Ao não abordar assuntos de interesse das mulheres mas considerados tabus na época, o DL reforça como deveria ser a instrução feminina, silenciada e clandestina.

Segundo as correntes positivistas e cientificistas, que vigoraram na sociedade brasileira desde o fim do século XIX, dada sua condição biológica, a função social da mulher estaria determinada pelo corpo que habita, que sangra, que engravida, por isso, frágil, carente de proteção e inábil ao exercício da força e da razão (CASANOVA, 1996, p.103). 

Em entrevista concedida em 2010 por Nádia Llhullier Santos, herdeira do espólio da Editora Logos, que editou o Dicionário do Lar, descobrimos que a autora Cláudia Santos era na verdade o pseudônimo de Mário Ferreira Santos. Ele escreveu a coleção com a ajuda da esposa Hollanda Llhullier e das filhas Nádia e Yollanda, que copiaram os verbetes em fontes diversas. Foram impressas 18 edições em 11 anos de publicação. A primeira edição obteve uma tiragem de 10.000 exemplares e as seguintes de 5.000 exemplares. A Editora Logos foi fundada em 1950 por Mário Ferreira do Santos, financiada por um grupo de alunas ricas, vindas de famílias da alta sociedade paulistana, com o intuito de publicar livros de filosofia e oratória que eram utilizados nos cursos que ele ministrava para elas. Chegou a possuir 60 vendedores, entre homens e mulheres, e os livros eram vendidos de porta em porta, por  todo o Brasil.

O corpo que questiona a domesticação do corpo

Nas últimas décadas do século XX, a luta de mulheres eclode em insurgência contra a opressão social e o encarceramento identitário pautado na domesticidade, reforçado pelos mecanismos de controle social e ainda legitimados pela ciência e pela tradição:

Corroborando, reafirmando e reproduzindo esse discurso secular, o discurso médico intervém com sua ciência anatômico-patológica sobre o corpo da mulher, cuja sexualidade se encontra relacionada a seu útero em obras médicas. Todo o drama feminino derivaria deste fato. Mais fraca, mais delicada, mais sensível, a mulher estaria sempre a exigir a proteção masculina do pai/marido. (CASA NOVA, 1996, p.99)

No campo da produção artística dos anos 1960-70, o conceito arte/vida vincula-se a produção de arte de cunho feminista, sob diversas acepções. Destacada aquela em que o corpo serve de meio e suporte de contestação, mulheres artistas subverteram não somente o que até então se estabelecia como arte como, entre outras coisas, puderam insurgir contra a naturalização dos papéis sociais à elas destinados (BROUDE; GARRARD; 1994, p.11-29).

Assim, no vídeo, na performance, no happening,na instalação, o corpo da mulher é resignificado em ações pelas quais mulheres artistas questionam e repensam os “papéis exclusivamente femininos”. Em estratégias de empoderamento pelas imagens – seja na imagem representada, seja como autoras e protagonistas de seus próprios trabalhos –, as mulheres manipulam essas imagens para os fins que lhes interessam, afim de libertarem-se da opressão política, social e cultural em que viviam. (TVARDOVSKAS, 2008, p.3)

A vídeoarte começa a ser produzida no Brasil nos anos 1970 (VIDEOARTE, 2017) e serve de meio para performance de ações artísticas conceituais, em sintonia com o que ocorria em outros centros de produção de arte no mundo. Letícia Parente (1930-1991) participa desta primeira geração de videoartistas experimentais. Nas décadas de 1970-80 a mulher e a domesticidade aparecem como assuntos centrais da sua obra:

Letícia Parente, artista, química e professora, foi casada 20 anos teve 5 filhos, 14 irmãos e muitos amigos. Além de conhecer as ditas tarefas do lar, como cozinhar, costurar e cuidar de filhos e marido, a moça baiana dirigia, fez parte da juventude católica e trabalhava foracomo professora de química, na Universidade Federal do Ceará e, depois, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tudo isto no Brasil da década de 60 e 70. Os vídeos que a artista produziu entre 1975-82 mostram imagens que nãosaem de casa. (MACIEL, 2017)

Nos manuscritos da artista, disponíveis em seu site, encontramos no texto Categorização de trabalhos (Parente, 198-)  um retrospecto de projetos que destacamos a seguir.

O primeiro projeto está ligado a “situações de dubiedade mulher-social-objeto”; o segundo a “situações de redução e violentação do ser humano por categorias sociais”; o terceiro ligado ao “elo dentro-fora”, a casa e o exterior. Em um de seus textos ela escreve:

Em Mulheres eu já estava numa linha de testemunho um pouco diferente, que era um trabalho em cima da mulher. O corpo da mulher todo escrito com as suas fissuras, o olhar, os braços. Todo o corpo em cima de um quadrante terrestre posicionando, e o contorno do corpo todo feito da própria função do corpo – não no sentido só da função física, mas de uma função social-humana. (PARENTE,198-, s/p.)

No DL, cuidar da aparência seria um prazer ou uma distração e fazia parte de “uma obrigação de cortesia para os demais (…) Algo que mais ou menos indirectamente, é também uma garantia de felicidade.” (Santos, 1966, p.86). As tarefas de uma casa de família são intermináveis e o DL faz-nos acreditar que o desgaste do corpo seria compensado pelos cuidados prescritos.

Fig. 1 –Verbete, 1966, vol. ABA– CAP, p.

A toilette tem um duplo caráter: destina-se a manifestar a dignidade social da mulher (padrão de vida, fortuna, o meio a que pertence), mas ao mesmo tempo concretiza o narcisismo feminino; é uma libré, um adorno; através dela, a mulher que sofre por não fazer nada, acredita exprimir o seu ser. Cuidar de sua beleza, arranjar-se, é uma espécie de trabalho que lhe permite apropriar-se de sua pessoa como se apropria do lar pelo seu trabalho caseiro; seu eu parece-lhe, então, escolhido e recriado por si mesma. (BEAUVOIR,1975, p. 296).

A graça e o encanto feminino são resultado de um treinamento de postura, trabalhados com disciplina diária e conseguido através da domesticação do corpo, o que em grande medida explica a associação que Simone de Beauvoir faz da mulher à atriz. A mulher finge:

Diante do homem, a mulher está sempre representando; mente, fingindo aceitar-se como o outro inessencial, mente erguendo, à frente dele, mediante mímicas, toaletes, frases preparadas, uma personagem imaginária; essa comédia exige uma constante tensão; perto do marido, perto do amante, toda mulher pensa mais ou menos: não sou eu mesma. (BEAUVOIR, 1975, p. 310)

Em 1975, Letícia Parente realiza com o vídeo “Preparação I”, o desvelamento do “fingimento” e da dissimulação feminina frente aos artifícios de embelezamento. No uso da maquiagem e na encenação dos gestos preparatórios, ela desnaturaliza a manutenção do atrativo feminino.

Fig. 2. Frames do vídeo Preparação I – 1975, 3min 30seg. Porta-pack ½ polegadas. Câmera: Jom T. Azulay

A artista é filmada de costas para a câmera e através do espelho. Uma escolha que por si já deflagra a mulher vista sob um ponto de vista indireto. Durante três minutos do filme ela “finge” se embelezar. Diante do espelho, os primeiros gestos são velozes e objetivos. A artista corta tiras de esparadrapo para tampar a boca e com um batom desenha os lábios. A boca desenhada está cerrada, a boca que está sob o desenho também, e assim estamos diante de uma mulher duplamente silenciada: uma mulher belamente “preparada” não precisa proferir palavra. Silenciada, a artista constrói uma máscara de beleza enviesada. Na sequência, cobre cada um dos olhos com o esparadrapo e desenha outros por cima. Na performance da “Preparação I”, a maquiagem é a máscara social de quem não fala nem vê. 

Como lemos em uma ilustração do Dicionário do Lar:“O espelho não mente, símbolo da verdade”, conquanto, fingir, no vídeo, é explicitar o disfarce. Redesenhar seu rosto pode nos remeter também ao desejo de mudança, o desejo de ser outra pessoa, contudo sendo uma boneca, um objeto de si mesma, esse outro nada mais seria do que uma camuflagem. 

Fig. 3. Imagem do Dicionário do Lar, 1966, vol. ABA-CAP, p.173

Das condições que se submete a dona de casa: uma negociação tácita

A dona de casa no Dicionário do Lar não é somente uma “dama de salão”. Além de saber como se comportar em ocasiões sociais, suas tarefas domésticas exigem conhecimento, firmeza, sensatez. No verbete DONA DE CASA, lê-se uma síntese de elementos cruciais na vida da mulher do lar : 1 – “ não pensar” é um conselho chave para a manutenção das coisas como elas sempre foram, 2 – mas, apesar disso, elas precisam equacionar seu tempo (pensar), para organizar seus trabalhos, preparar seus cosméticos e cuidar de sua aparência, 3 – pois os trabalhos na casa as consomem, são duros, cansativos e desgastantes. Ela precisa também contabilizar, controlar e equilibrar os gastos com a casa.

donadecasaFig. 4. Imagem do Dicionário do Lar, 1966, vol. ABA-CAP, p.492

Mães de famílias muito grandes, detêm um senso de dever elevado, principalmente com relação às filhas, quanto à transmissão de sua função doméstica e social, em que refeições e recepções têm um papel relevante. Essas mulheres, muito ocupadas, podem encontrar a felicidade no cumprimento de suas tarefas e na harmonia de seu lar. (PERROT, 2007, p. 48)

No vídeo “Tarefa I” (1982, 2 min.), de Letícia Parente, a artista se deita vestida em uma tábua de passar roupa para que outra mulher (uma empregada?) passe o ferro sobre ela. Na curta duração do vídeo, a imagem-síntese é emblema de uma passividade crítica.  Em um percurso de sentidos evocados pelo vídeo, pode-se dizer que a mulher voluntariamente aceita se submeter ao lugar de objeto e cede às condições que poderiam atormentá-la, no caso, a quentura do ferro.  

O corpo que preenche a roupa está imóvel, sem agonia aparente. Apesar de vermos seu contorno e seu volume sobre a tábua, estamos diante da anulação de um corpo exposto, silencioso. Impassível, o corpo parece não existir sob a presença do ferro que desliza com agilidade e naturalidade sobre a vestimenta.

Contudo, pensamos, não era para aquele corpo estar lá. O absurdo revelado nesse assujeitamento torna explicita a associação da mulher com as tarefas domésticas. A mulher é um prolongamento da roupa sobre o seu corpo.  

Fig. 3 – Letícia Parente, Tarefa I,  1982, 3 min. Betamax colorido.

Lembramos que o verbo passar é também sinônimo de suportar uma situação, sofrer, tolerar, sobreviver. O que “se passa” aqui é reflexo da própria vida, experimentada em sua condição doméstica.  

É de um modo inesperado que a mulher do lar, de corpo anulado, ousa romper com o que está prescrito e o faz assumindo uma postura passiva, silenciosa.  Enquanto a roupa é passada, o corpo da mulher aguarda, imóvel, até o fim do vídeo.

Os vídeos “Manutenção I” e “Tarefa I” representam a contestação da mulher artista. Esta,  mesmo assumindo funções domésticas, de mãe, esposa e gestora da casa, produz questionamentos sobre sua atuação neste espaço. Arrisco assinalar a presença de uma feminista do lar.

Há aqui uma identidade que não rompe totalmente com a domesticidade e que elabora uma negociação tácita entre as condições a que se submete. Produz, assim, uma crítica contundente sobre elas.

Nossos corpos constituem-se na referência que ancora, por fim, a identidade. E, aparentemente, o corpo é inequívoco, evidente por si; em consequência, esperamos que o corpo dite a identidade, sem ambiguidades nem inconstância. Aparentemente se deduz uma identidade de gênero, sexual ou étnica de “marcas” biológicas; o processo é, no entanto, muito mais complexo, e essa dedução pode ser (e muitas vezes é) equivocada. Os corpos são significados pela cultura e são, continuamente, por ela alterados. (LOURO, 2013, p.14)

No fluxo que se move entre a vida e a arte, o corpo feminino ressignifica e reescreve a história da vida doméstica.

Considerações finais 

O texto apresentado oferece-nos a construção de dois corpos que habitam o espaço da casa: o corpo domesticado, da mulher idealizada pelo manual e o corpo insurgente que questiona, por meio da arte, essa domesticação. Nos vídeos comentados, parece-nos que a contestação artística é antes uma forma de sobreviver às funções domésticas, criticando-as, do que um rompimento total com as mesmas. 

Importa destacar também, que o modelo feminino construído e difundido pelo Dicionário do Lar, não deve ser confundido com a mulher real, sendo preciso resistir ao falível gesto de julgar a mulher “do lar” dos anos 1950-60 pelas regras que o DLexpõe e pelas regras do nosso tempo. De todo modo, na análise discursiva desta fonte indireta, acessamos um horizonte de vida preconizado a elas. Nota-se que o DL busca oferecer um conforto àquela que faz da casa seu pedaço de mundo, sem proporcionar, entretanto, outra alternativa de realização pessoal. 

Consciência feminina e função doméstica, que não são a mesma coisa, cooperam no DLpara reforçar a domesticação da mulher na esfera íntima, sem direito de escolha. Já as obras de Letícia Parente, se servem das mesmas funções para desnaturalizar os mesmos “papéis femininos” historicamente construídos. 

Referências

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ISBN: 978-85-7979-060-7